Este é o 6º artigo da série que
publico no blog da Casa da Cultura do Urubuí, a propósito da criação da
Comissão da Verdade que procura desvendar os crimes ainda ocultos cometidos
pela Ditadura Militar contra a população brasileira, denunciando os crimes
cometidos contra os povos indígenas. Aqui trato, em especial, da estratégia do
Governo usada no massacre do povo Kiña, ou Waimiri-Atroari, a partir de 1967,
quando começou a construção da BR-174 e posteriormente para ocultar o crime.
|
O posto da FUNAI
tinha 18 orifícios (em vermelho) nas paredes para mira com armas de fogo.
Foto:
Egydio Schwade, 1986 |
Entre
1967 e 1977 o interesse do governo foi a construção da BR-174. Os índios tinham que ser retirados de qualquer
jeito do roteiro dessa estrada e da mineração. O presidente da FUNAI, General
Oscar Jerônimo Bandeira de Mello, “referindo-se às diretrizes da Funai para
1972, voltou a ressaltar que o Índio não pode deter o desenvolvimento” (Y Juca
Pirama). E o Coronel Arruda, comandante do 6º. BEC – Batalhão de Engenharia e
Construção, responsável pela construção da BR-174 em terras Kiña
(Waimiri-Atroari), falou ainda mais claro: “A estrada é irreversível como é a
integração da Amazônia no país. A estrada é importante e terá que ser
construída custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso
para o Batalhão, apenas para pacificarmos primeiro os índios” (O Estado de São
Paulo, 21 de janeiro de 1975). O CIMI, na sua 5ª Assembléia Regional, realizada
em Belém em janeiro de 1975, denunciou essa política do Governo e dirigiu ao
então presidente da FUNAI, general Ismarth de Araújo, um veemente apelo, para
que o governo parasse a construção da estrada. Mas o presidente da FUNAI
General Ismarth de Araújo respondeu: “Não competindo à FUNAI a decisão da
paralisação ou não dos trabalhos de construção da rodovia, teremos que planejar
e desenvolver o nosso trabalho com a estrada ou sem ela”.
E a política aplicada na ocasião foi a
violência, a repressão e o isolamento do povo Waimiri-Atroari, afastando quem
denunciava tal atitude e as ações dos militares contra os mesmos. O fato dos
Waimiri-Atroari estarem no roteiro de um grande projeto do Governo,
transformando-se em “empecilho” a sua construção, os tornava automaticamente
“criminosos”. A imprensa, o indigenismo alternativo, os pesquisadores e até
mesmo funcionários da FUNAI que se opunham deviam ser mantidos à distancia para
que o governo pudesse continuar o seu projeto na área. Construir a Hidrelétrica
de Balbina e instalar a mineração, estes eram os interesses de fundo. Manipular
os índios para que não atrapalhassem esses objetivos do governo era a principal
tarefa da FUNAI na área. Todos os dirigentes do órgão sabiam disso e nenhum
funcionário da FUNAI ou soldado do 6º BEC que trabalhava na região desconhecia
este fato. ...“um direito de nós gente superior”, como qualificou o Pe. Calleri
(talvez como ironia) a sua interferência na vida e no território dos índios a
serviço dos projetos do governo, ao controlar a distribuição dos presentes aos
índios durante prestação de serviço à FUNAI, pouco antes de sua morte trágica (Veja
o 5º radio do Pe Calleri durante a expedição).
Em 1977 a estrada foi inaugurada e a
resistência Kiña ou Waimiri-Atroari estava totalmente arrasada e sua população
reduzido a menos de 400 pessoas. O interesse do Governo Militar se volta nesta
fase para a implantação dos seus projetos empresariais: Balbina, Mineração e
outros. A estratégia dos dirigentes da FUNAI e dos condutores da política
indigenista, junto aos Waimiri-Atroari, foi então apresentar esse povo ao
público como “agricultores pacíficos, dóceis” e “integrados”, diferente da
imagem de terríveis que até então tinha sido utilizada enquanto a tática era o
massacre. Agentes do governo perambulavam de mãos dadas com os índios pelas
ruas de Manaus. O coordenador do Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari, chegou a levar
um grupo deles à capital para “mostrar aos estudantes do Colégio Christus,
pessoalmente, o índio real”, como se fosse objeto de apreciação (Schwade e
Pereira; “Nem Índios Nem Integrados: Waimiri-Atroari!”,1981).
Para a implantação “pacífica” dos
projetos de interesse dos militares na área, convinha que a política da FUNAI
colaborasse para manter as vítimas remanescentes isoladas da opinião pública,
de pesquisadores e do movimento popular indigenista, por serem estes os mais
exigentes na busca de informações sobre o que ocorreu aos mais de 2000 Kiña
simplesmente desaparecidos. Assim a FUNAI colaborou em manter ocultos os
criminosos.
O Banco Mundial, que financiava a
Hidrelétrica de Balbina, para silenciar a denúncia mundial de entidades, à
frente a Anistia Internacional, condicionou, por volta de 1986, a concessão de
novos financiamentos para a obra à criação de um programa assistencial
sanitário e educacional aos Waimiri-Atroari. Durante 25 anos, o Banco Mundial
financiaria esse programa, através da Eletronorte. Para isso, em abril de 1987,
FUNAI e Eletronorte criaram, de comum acordo, o Programa Waimiri-Atroari (PWA).
Pela primeira vez na história brasileira se passa a condução da política
indigenista oficial de um povo indígena, os Kiña ou Waimiri-Atroari, a uma
empresa.
FUNAI, Eletronorte e mineração
Paranapanema criam, então, um novo conceito de auto-determinação. Seu
pressuposto é convencer os índios de que a FUNAI e o Programa
Waimiri-Atroari-PWA (Eletronorte), sempre tem razão: “a FUNAI é que sabe” (BAINES)
e novas lideranças formadas pela FUNAI-PWA tornam-se cumpridoras e
transmissoras de ordens, adotando o discurso de dominação dos funcionários. A
missão imposta de fora não é a de remover os elementos prejudiciais ao povo,
aqueles que depredam e saqueiam o patrimônio ou que destroem e ridicularizam a
sua cultura e costumes, mas as pessoas que atrapalham os interesses da
mineradora, da FUNAI e da Eletronorte. Esta foi a tônica seguida pelo Programa
Waimiri-Atroari sob o controle da empresa Eletronorte. A política indigenista
do Governo na área continua assim a se identificar com os interesses que
impulsionaram a BR-174, Balbina e a mineração Taboca. Quem se opõe a ela é
perseguido, ou sutilmente impedido no acesso à área. Funcionários, jornalistas,
indigenistas ou cientistas, todos tem o mesmo destino quando põe críticas ao
Programa Waimiri-Atroari.
|
Panfleto distribuído
durante a repressão militar aos Waimiri-Atroari.
|
Dentro das ações conseqüentes dessa
nova política implantada pelo Governo, inscreveu-se, em dezembro de 1986, a
nossa expulsão da área, onde realizávamos o primeiro programa de alfabetização
na língua desse povo. E um ano depois, a expulsão do lingüista e antropólogo
Marcio Silva e de sua esposa a médica Dra. Marise, assim como, em junho de
1989, a do antropólogo Stephen Baines e de sua assistente de pesquisa, a
jornalista Verenilde Santos Pereira. Ante a opinião pública a FUNAI atribuiu as
expulsões aos índios.
A primeira ação do Programa
Waimiri-Atroari, cuja condução é exercida desde o seu início até os dias de
hoje por um único indigenista, foi transferir duas aldeias Waimiri, dentro do
próprio território, para abrir espaço ao lago de Balbina, sem que até hoje
fossem indenizados conforme manda a lei. O Programa Waimiri-Atroari, por sua
vez, é um programa propositadamente ambíguo, enquanto é financiado pelo Banco
Mundial através da Eletronorte. E se por um lado este programa tem prestado
assistência de saúde aos Waimiri-Atroari (o que era obrigação do Estado
Brasileiro), e que nele tenham trabalhado pessoas de boa vontade, por outro os
danos psicológicos, sociais e para o registro da verdade da história de crimes
contra este povo é incalculável.
Hoje a FUNAI, como principal
testemunha do desaparecimento dos Waimiri-Atroari, se mantém estrategicamente à
distancia dos novos acontecimentos, enquanto a empresa que alagou grande parte
da Reserva desses índios dirige o destino desse povo.
Como se vê, esta política tem tudo a
ver com a estratégia de ação do Governo e das empresas nesta área, mesmo que
muitas pessoas que trabalharam e trabalham no Programa Waimiri-Atroari não se
dê conta disso por ingenuidade ou desconhecimento da história.
Egydio Schwade