quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

2000 Waimiri-Atroari Desaparecidos Durante a Ditadura Militar, Presidente Figueiredo conta sua história.


Este é o 6º artigo da série que publico no blog da Casa da Cultura do Urubuí, a propósito da criação da Comissão da Verdade que procura desvendar os crimes ainda ocultos cometidos pela Ditadura Militar contra a população brasileira, denunciando os crimes cometidos contra os povos indígenas. Aqui trato, em especial, da estratégia do Governo usada no massacre do povo Kiña, ou Waimiri-Atroari, a partir de 1967, quando começou a construção da BR-174 e posteriormente para ocultar o crime.


 
O posto da FUNAI tinha 18 orifícios (em vermelho) nas paredes para mira com armas de fogo.
Foto: Egydio Schwade, 1986


Entre 1967 e 1977 o interesse do governo foi a construção da BR-174. Os índios tinham que ser retirados de qualquer jeito do roteiro dessa estrada e da mineração. O presidente da FUNAI, General Oscar Jerônimo Bandeira de Mello, “referindo-se às diretrizes da Funai para 1972, voltou a ressaltar que o Índio não pode deter o desenvolvimento” (Y Juca Pirama). E o Coronel Arruda, comandante do 6º. BEC – Batalhão de Engenharia e Construção, responsável pela construção da BR-174 em terras Kiña (Waimiri-Atroari), falou ainda mais claro: “A estrada é irreversível como é a integração da Amazônia no país. A estrada é importante e terá que ser construída custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão, apenas para pacificarmos primeiro os índios” (O Estado de São Paulo, 21 de janeiro de 1975). O CIMI, na sua 5ª Assembléia Regional, realizada em Belém em janeiro de 1975, denunciou essa política do Governo e dirigiu ao então presidente da FUNAI, general Ismarth de Araújo, um veemente apelo, para que o governo parasse a construção da estrada. Mas o presidente da FUNAI General Ismarth de Araújo respondeu: “Não competindo à FUNAI a decisão da paralisação ou não dos trabalhos de construção da rodovia, teremos que planejar e desenvolver o nosso trabalho com a estrada ou sem ela”.


E a política aplicada na ocasião foi a violência, a repressão e o isolamento do povo Waimiri-Atroari, afastando quem denunciava tal atitude e as ações dos militares contra os mesmos. O fato dos Waimiri-Atroari estarem no roteiro de um grande projeto do Governo, transformando-se em “empecilho” a sua construção, os tornava automaticamente “criminosos”. A imprensa, o indigenismo alternativo, os pesquisadores e até mesmo funcionários da FUNAI que se opunham deviam ser mantidos à distancia para que o governo pudesse continuar o seu projeto na área. Construir a Hidrelétrica de Balbina e instalar a mineração, estes eram os interesses de fundo. Manipular os índios para que não atrapalhassem esses objetivos do governo era a principal tarefa da FUNAI na área. Todos os dirigentes do órgão sabiam disso e nenhum funcionário da FUNAI ou soldado do 6º BEC que trabalhava na região desconhecia este fato. ...“um direito de nós gente superior”, como qualificou o Pe. Calleri (talvez como ironia) a sua interferência na vida e no território dos índios a serviço dos projetos do governo, ao controlar a distribuição dos presentes aos índios durante prestação de serviço à FUNAI, pouco antes de sua morte trágica (Veja o 5º radio do Pe Calleri durante a expedição).



Em 1977 a estrada foi inaugurada e a resistência Kiña ou Waimiri-Atroari estava totalmente arrasada e sua população reduzido a menos de 400 pessoas. O interesse do Governo Militar se volta nesta fase para a implantação dos seus projetos empresariais: Balbina, Mineração e outros. A estratégia dos dirigentes da FUNAI e dos condutores da política indigenista, junto aos Waimiri-Atroari, foi então apresentar esse povo ao público como “agricultores pacíficos, dóceis” e “integrados”, diferente da imagem de terríveis que até então tinha sido utilizada enquanto a tática era o massacre. Agentes do governo perambulavam de mãos dadas com os índios pelas ruas de Manaus. O coordenador do Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari, chegou a levar um grupo deles à capital para “mostrar aos estudantes do Colégio Christus, pessoalmente, o índio real”, como se fosse objeto de apreciação (Schwade e Pereira; “Nem Índios Nem Integrados: Waimiri-Atroari!”,1981).



Para a implantação “pacífica” dos projetos de interesse dos militares na área, convinha que a política da FUNAI colaborasse para manter as vítimas remanescentes isoladas da opinião pública, de pesquisadores e do movimento popular indigenista, por serem estes os mais exigentes na busca de informações sobre o que ocorreu aos mais de 2000 Kiña simplesmente desaparecidos. Assim a FUNAI colaborou em manter ocultos os criminosos.



O Banco Mundial, que financiava a Hidrelétrica de Balbina, para silenciar a denúncia mundial de entidades, à frente a Anistia Internacional, condicionou, por volta de 1986, a concessão de novos financiamentos para a obra à criação de um programa assistencial sanitário e educacional aos Waimiri-Atroari. Durante 25 anos, o Banco Mundial financiaria esse programa, através da Eletronorte. Para isso, em abril de 1987, FUNAI e Eletronorte criaram, de comum acordo, o Programa Waimiri-Atroari (PWA). Pela primeira vez na história brasileira se passa a condução da política indigenista oficial de um povo indígena, os Kiña ou Waimiri-Atroari, a uma empresa.



FUNAI, Eletronorte e mineração Paranapanema criam, então, um novo conceito de auto-determinação. Seu pressuposto é convencer os índios de que a FUNAI e o Programa Waimiri-Atroari-PWA (Eletronorte), sempre tem razão: “a FUNAI é que sabe” (BAINES) e novas lideranças formadas pela FUNAI-PWA tornam-se cumpridoras e transmissoras de ordens, adotando o discurso de dominação dos funcionários. A missão imposta de fora não é a de remover os elementos prejudiciais ao povo, aqueles que depredam e saqueiam o patrimônio ou que destroem e ridicularizam a sua cultura e costumes, mas as pessoas que atrapalham os interesses da mineradora, da FUNAI e da Eletronorte. Esta foi a tônica seguida pelo Programa Waimiri-Atroari sob o controle da empresa Eletronorte. A política indigenista do Governo na área continua assim a se identificar com os interesses que impulsionaram a BR-174, Balbina e a mineração Taboca. Quem se opõe a ela é perseguido, ou sutilmente impedido no acesso à área. Funcionários, jornalistas, indigenistas ou cientistas, todos tem o mesmo destino quando põe críticas ao Programa Waimiri-Atroari.



 
Panfleto distribuído durante a repressão militar aos Waimiri-Atroari.
Dentro das ações conseqüentes dessa nova política implantada pelo Governo, inscreveu-se, em dezembro de 1986, a nossa expulsão da área, onde realizávamos o primeiro programa de alfabetização na língua desse povo. E um ano depois, a expulsão do lingüista e antropólogo Marcio Silva e de sua esposa a médica Dra. Marise, assim como, em junho de 1989, a do antropólogo Stephen Baines e de sua assistente de pesquisa, a jornalista Verenilde Santos Pereira. Ante a opinião pública a FUNAI atribuiu as expulsões aos índios.



A primeira ação do Programa Waimiri-Atroari, cuja condução é exercida desde o seu início até os dias de hoje por um único indigenista, foi transferir duas aldeias Waimiri, dentro do próprio território, para abrir espaço ao lago de Balbina, sem que até hoje fossem indenizados conforme manda a lei. O Programa Waimiri-Atroari, por sua vez, é um programa propositadamente ambíguo, enquanto é financiado pelo Banco Mundial através da Eletronorte. E se por um lado este programa tem prestado assistência de saúde aos Waimiri-Atroari (o que era obrigação do Estado Brasileiro), e que nele tenham trabalhado pessoas de boa vontade, por outro os danos psicológicos, sociais e para o registro da verdade da história de crimes contra este povo é incalculável.



Hoje a FUNAI, como principal testemunha do desaparecimento dos Waimiri-Atroari, se mantém estrategicamente à distancia dos novos acontecimentos, enquanto a empresa que alagou grande parte da Reserva desses índios dirige o destino desse povo.


Como se vê, esta política tem tudo a ver com a estratégia de ação do Governo e das empresas nesta área, mesmo que muitas pessoas que trabalharam e trabalham no Programa Waimiri-Atroari não se dê conta disso por ingenuidade ou desconhecimento da história.





Casa da Cultura do Urubuí, 13 de abril de 2012.





Egydio Schwade

Nenhum comentário:

Postar um comentário